O Ponto Cego de Scott Farquhar sobre IA e Criatividade

O Ponto Cego de Scott Farquhar sobre IA e Criatividade

A corrida global pela supremacia em inteligência artificial (IA) tem gerado debates intensos, especialmente quando o assunto é o uso de conteúdo criativo para o treinamento dessas tecnologias. Na Austrália, uma figura proeminente reacendeu a discussão: Scott Farquhar, cofundador da gigante de software Atlassian e presidente do Tech Council of Australia.

Farquhar defende que a Austrália deveria permitir que as IAs treinassem gratuitamente em obras criativas, espelhando as leis de 'uso justo' dos Estados Unidos. Contudo, essa visão, focada na inovação e no investimento, parece negligenciar um ponto crucial que pode ter consequências devastadoras para a florescente indústria criativa australiana.

A Visão de Farquhar: Inovação Acima de Tudo?

Em sua argumentação, Scott Farquhar afirma que a legislação australiana atual, que não possui isenções de 'uso justo' como a americana, está freando o investimento e o desenvolvimento de empresas de IA no país. Para ele, “todo uso de IA para mineração, busca ou varredura de dados é provavelmente ilegal sob a lei australiana e acho que isso prejudica muito o investimento dessas empresas na Austrália”.

O empresário argumenta que o treinamento de IA não constitui roubo de trabalho, a menos que a IA seja usada para “copiar diretamente um artista”, como criar uma música no estilo exato de um determinado criador. Farquhar enfatiza que os benefícios dos grandes modelos de linguagem superam as preocupações levantadas pelo treinamento gratuito de IA em dados de outras pessoas, especialmente se o resultado for algo “novo e original” (transformador). Ele chegou a declarar à ABC que corrigir essa questão poderia “desbloquear bilhões de dólares em investimento estrangeiro na Austrália”.

O Ponto Crucial Ignorado: O Valor da Criação Humana

Apesar do apelo de Farquhar por um ecossistema de IA mais livre, sua proposta ignora a espinha dorsal de qualquer indústria criativa: os direitos e a compensação dos criadores. A questão do 'uso justo' nos EUA, mencionada por Farquhar, está longe de ser um consenso e tem sido objeto de inúmeras disputas legais, demonstrando que não é uma solução simples ou universalmente aceita.

Organizações representativas da indústria criativa australiana, como a Copyright Agency e a Media, Entertainment and Arts Alliance (MEAA), rejeitam veementemente a ideia de acesso irrestrito e gratuito. Elas classificam tais propostas como uma “planta para o roubo” e alertam para os efeitos “devastadores” nas indústrias criativas.

Essas entidades sublinham que as obras de artistas, músicos, escritores e pesquisadores australianos são tesouros nacionais que merecem respeito, não exploração. A preocupação principal reside na ausência de qualquer consideração sobre como compensar os criadores cujo trabalho é a base para o treinamento dessas IAs. Além disso, há um temor legítimo sobre a segurança no emprego e o futuro da criatividade humana em um cenário onde a IA pode replicar e, potencialmente, desvalorizar o trabalho original sem remuneração adequada.

O Dilema Australiano: Inovação vs. Direitos

A Austrália se encontra em uma encruzilhada. De um lado, a promessa de bilhões em investimentos e um impulso na inovação tecnológica. De outro, a necessidade premente de proteger os direitos de propriedade intelectual e garantir a sustentabilidade de suas indústrias criativas.

Ignorar a compensação e o consentimento dos criadores não é apenas uma questão ética; é uma ameaça existencial a ecossistemas culturais que demoraram décadas para se desenvolver. Enquanto Farquhar foca na “transformação” do resultado final da IA, a base para essa transformação são as milhões de obras criadas por mentes humanas, muitas vezes sem qualquer forma de reconhecimento ou pagamento.

O desafio para os legisladores australianos, e para governos em todo o mundo, é encontrar um equilíbrio. Uma política que promova a inovação em IA, mas que ao mesmo tempo valorize e remunere adequadamente os criadores, é fundamental para que a era da inteligência artificial não se construa sobre a desvalorização da arte e da cultura humanas.

Este artigo foi escrito com base em informações públicas e análises jornalísticas sobre o tema.

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